Hoje vamos falar com a maravilinda Dionne, que tive o prazer de conhecer pessoalmente, bater um papo com essa mente (super) inteligente e convidá-la a nos informar um tico mais!!!
Di, só um parênteses: quando estava estudando sobre as intersexuais, vi um relato que me emocionou muito, que foi uma inter famosa falando que na época, quando tinha recém se descoberto, rezava para que uma pessoa pública comentasse sobre o caso ou que até mesmo se assumisse, que dessa forma ela se sentiria mais integrada à sociedade. Meus olhinhos suaram e aí pensei: quem sabe eu, a Di e a galera que compartilhar essa entrevista não pode ajudar em algo, né?
Enfim, nossa parte está sendo feita e vamos lá!
Primeiro, se apresente pra gente (idade, profissão, formação, etc kkkkkkk).
Olá minha genteeee lindaaa! Então, meu nome é Dionne, sou terapeuta ocupacional formada pela FMRP- USP. Sou pós-graduada em saúde do adulto e idoso pela FMUSP e tenho experiência em atenção à sexualidade humana. Atualmente estou pleiteando o mestrado pela UFPR na área de políticas públicas para trabalhar com pessoas transgêneras. Também sou militante e ativista dos direitos humanos da população transgênero e intersexual.
Trabalho na região metropolitana de Curitiba como Terapeuta Ocupacional e faço uns trabalhos em terapias alternativas e de atenção à sexualidade humana, além de ser colaboradora do Transgrupo Marcela Prado de Curitiba, que trabalha com atendimentos com a população Trans de Curitiba e região (estou tentando integrar esse atendimento também para a população intersexual).
Agora a pergunta que aposto que 90% dos leitores estão fazendo: Que babado é esse de ser “Intersexual”?
Então vamos lá hahahaha:
Gente, acho natural essa dúvida, até porque nossa identidade sempre foi mantida em segredo, tanto pela própria classe médica, quanto pela sociedade, que não vê interesse que nosso grupo ganhe visibilidade, pois nossa existência legitimiza a existência das pessoas transexuais e isso é um balde de água fria nos pensamentos reacionários.
Enfim, vamos lá pela parte que interessa né? Hehehe
Um adendo antes de começar, rs: XX é o cromossomo sexual esperado para o sexo feminino e XY para o sexo masculino, porém nos estados intersexuais essa regra não funciona. Existe algo que é comum, porém existem inúmeros outros casos de pessoas que manifestam inúmeras combinações.
Intersexual é a pessoa que nasce biologicamente “entre” os sexos (nem totalmente masculino, nem totalmente feminino), e isso pode variar, podendo ter pessoas que são totalmente intersexuais (nem homem, nem mulher), pessoas que tem pênis e são XX, vagina e XY, ter duas ou mais linhagens genéticas, ser XX e XY ao mesmo tempo, ser XX com vagina e ter testículos no local onde ficam os ovários e também ser XY e ter ovários ou glândula indiferenciada no local que estariam os testículos. Ou simplesmente ter hormônios sexuais diferentes do sexo que foi identificado no nascimento.
Existem mais de 40 tipos de “estados intersexuais” e a intersexualidade não corresponde apenas um quesito cromossômico: ela também está relacionada a genes, aos hormônios e ao físico (fenótipo).
Já a orientação sexual é outra coisa e tem a ver com homo, hétero, bi e assexualidade. Ou seja, com o que você gosta ou sente atração sexual e não com seu gênero e sexo de identificação.
Lembrando bem que no final das contas o que vai determinar o sexo da pessoa é seu sexo psicológico (identidade de gênero), pois não adianta nada o médico verificar toda a questão genética e biológica sem ouvir a pessoa, pois acaba “escolhendo” o sexo errado levando muitas vezes esta pessoa a ter uma disforia de gênero, já que no final das contas quem sabe qual sexo realmente é o nosso somos nós mesmos, né pessoal!!! E essa é nossa luta no movimento intersexual, para que a criança no futuro possa decidir seu sexo e não uma comissão médica ou os pais, os quais nem sempre sabem como é a cabeça desta criança.
Por que não usam mais o termo “Hermafrodita”?
Esse termo era usado antigamente e vem da junção dos nomes de um deus e uma deusa gregos, Hermes e Afrodite. Hermes era o deus da sexualidade masculina (entre outras coisas) e Afrodite uma deusa da sexualidade feminina, amor e beleza.
Embora os termos mais antigos ainda sejam citados, eles vêm sendo substituídos pela maioria dos especialistas (pacientes e familiares) pelo termo intersexual.
Daí vocês me perguntam: “como assim”???
Da mesma forma que não usamos o termo lepra para nos referirmos à hanseníase, pois a mesma carrega toda uma carga histórica negativa associada a uma suposta maldição divina, o termo hermafrodita, pseudo-hermafrodita e hermafroditismo carrega toda uma carga negativa também.
Sabe por quê?
Antigamente, nas dezenas de culturas (grega, romana, egípcia, nórdica, hindu, ameríndia, etc…) nós intersexuais éramos vistas como representação do divino na terra: éramos cultuadas e tals (rsrsrs me sentindo poderosa aqui hahaha). Porém, com o advento da cultura judaico-cristã-islâmica, tudo que se remetia a estas culturas começou a ser destruído (como todos aqui devem ter visto sobre a história dos templos, bibliotecas e tudo que remetia a estas culturas era destruído) inclusive a nossa existência – levando a palavra hermafrodita a ganhar carga negativa e nossa condição sendo demonizada. Enfim, é por essas e outras coisas já citadas que esse termo está caindo por terra!!! Até porque, quem tem que decidir como somos chamados somos nós intersexuais e não as pessoas cisgêneras (cis = “comuns”) que não passaram por estas vivências, né?
Qual é a diferença entre uma trans e uma intersexual?
Basicamente a pessoa trans (travesti ou mulher transexual) está relacionado à sua psique, seu sexo psicológico, que chamamos de identidade de gênero, o qual não condiz com seu sexo biológico, podendo ou não fazer a cirurgia de readequação sexual (conhecida popularmente como mudança de sexo, lembrando que este termo é errado). E também podendo ou não fazer a terapia hormonal.
Já a pessoa intersexual está relacionada à manifestação do sexo biológico que se caracteriza por não ser totalmente masculina, totalmente feminina, ou até ser totalmente intersexual, onde estes indivíduos podem apresentar genital masculino, feminino e ambíguo (um clitóris grande que parece mais um pintinho, podendo ou não ter o local onde faz xixi dentro dele, e uma entradinha lembrando uma vagina no local onde ficaria o “saco”, etc).
Ao contrário do que muita gente pensa, nem sempre na intersexualidade o(s) sexo(s) aparecem de maneira aparente/externa, né? Você poderia falar mais a respeito dos vários tipos de intersexuais?
Sim, claro linda!!! Então, sobre a parte biológica, eu falei logo acima de uma forma mais complexa hahahaha. Agora vou falar de uma forma mais popular mesmo, até porque sou destas hihihi.
Então, a pessoa intersexual pode ter pipi, pode ter pepeca ou mesmo ter o genital ambíguo, o qual parece ao mesmo tempo pipi e uma pepeca (essa ideia de ter dois sexos é mito). O que um intersexo tem de fato que o mantém exatamente entre os sexos quando ainda era chamado de hermafrodita era a presença de testículo e ovário no mesmo indivíduo, ou as duas misturadas (ovotestis). Então, quando acontece da pessoa intersexual ter aquela “marca” física no sexo (ter genital ambíguo) todo mundo sabe de sua condição que fica fácil de se identificar (não sei se isso é um benefício, pois muitos intersexuais nascidos assim são submetidos a cirurgias mutilantes ainda bebês, sem serem ouvidos – o que geralmente provoca marcas para toda vida – já que essa cirurgia é feita pensando na questão biológica e não psicológica da criança. E muitas vezes não se pensa (médicos, etc) que essa pessoa vai crescer e sua genital precisa ser funcional.
Eu mesma, conversando com outros intersexos, conheci vários que foram operados para o sexo que eles futuramente não se identificaram e muitos relatam não terem sensibilidade no genital, pois os médicos quando operaram não pensaram muito na sensibilidade, que um dia esse bebê ia crescer e transar e querer sentir prazer, né!!!
Já vi genital operada cheia de marcas. É muito triste e por isso o movimento luta para proibição da cirurgia em bebês, porque não tem como você saber qual foi a alteração que estas crianças tiveram em sua identidade de gênero. Não temos como saber qual será realmente o sexo delas.
O bom é que os casos mais comuns são de pessoas que só descobrem a intersexualidade na puberdade (como foi meu caso), pois elas tem aparentemente um pipi ou uma pepeca “normais” e só quando entram na adolescência descobrem “algo diferente”.
Daí vocês me perguntam: como assim???
Da pior maneira, pois o que esperava-se que era um menino, começa a ficar feminina e ganhar características de menina e o que era esperado ser menina começa a ganhar características de menino. Imaginem a confusão, isso é um terror, mas daí temos tratamentos para que se mantenham os caracteres dos sexos já identificados.
Agora, se a pessoa tiver uma disforia de gênero, que é ter o sexo psicológico diferente do sexo físico (como foi meu caso), isso poderá ser um grande facilitador para a transição de gênero, porém, infelizmente em muitos casos de pessoas que são trans e intersexo (isso mesmo, vocês não estão loucos e depois vou explicar direitinho) são tratados para o sexo que sua genital é, muitas vezes por ser cômodo para o médico e para família e a pessoa que passa por essa condição não é ouvida – gerando inúmeros os problemas já citados por aqui.
Como detectar cada um deles? Ou seja, se você tiver um filho assim, como descobrir, visto que nem sempre o fato é visivelmente aparente?
Você, como pai ou responsável, deve estar sempre atento, acolher seu filho e ajudá-lo a ser quem é e não quem você quer que ele seja!!! Ou seja, você deve perceber desde muito cedo o que ele te passa, tentar perceber qual é sua expressão de gênero, etc.
Se a pessoa CIS se identifica com seu sexo físico, seja ele pipi, pepeka ou ambígua, uma pessoa TRANS não se identifica com seu órgão: seja ele pipi, pepeka ou ambígua. Logo, a pessoa intersexo pode ser CIS, pode ser TRANS e pode ser Não-binária também genteeee.
Lembrando que a pessoa que tem que decidir isso e não pais, responsáveis ou médicos. Qualquer cirurgia sem consentimento (nessa área) é mutilação!
E no seu caso em específico, como foi a descoberta da Intersexualidade? Foi você, seus pais ou outra pessoa que começou a perceber que havia algo de especial em ti? No seu caso, você operou, certo? Como foi o processo para você?
Então, eu fui socializada como uma pessoa pertencente ao gênero masculino, visto que tinha um pênis (apesar de ser um minipipizinho, rsrsrs). O médico orientou a minha família que o atraso no desenvolvimento do órgão era transitório e que em breve tudo estaria normalizado. No máximo, futuramente recorreriam a um procedimento cirúrgico ou hormonal. Entretanto, a promessa do médico de que aquelas características desapareciam com o tempo não se cumpriu: as coisas só foram piorando e minha feminilidade ficando mais evidente. Me lembro de muitas coisas em relação à minha percepção do genital e essa disforia de gênero que eu sentia. E pasmem: tenho lembranças desde meus 3 anos de idade!
Ok, muitos aí podem questionar e dizer: “mas como você pode se lembrar de algo tão sério, sendo tão nova? Como você se lembra se a maioria não se lembra de nada nessa idade?
E eu respondo: Mas é óbvio né! Porque não tiveram uma experiência traumática ao se identificar com um sexo diferente daquele que todos a volta falavam que você era!
Só sei que eu sempre me identificava com o universo feminino e suas representações na época. Pedia aos meus pais objetos que todas as meninas na época usavam e logo no início de minha infância já comecei a sofrer repressões: meu pai afirmava a todo momento que eu era um menino e que os objetos deveriam ser correspondentes a esse gênero. E se eu teimasse em afirmar isso, acabava sofrendo mais repressões.
Minha mãe percebia alterações biológicas acerca do meu corpo, porém, meu pai dizia que estava tudo bem: o único cuidado que precisavam ter era com a criação: deveriam me educar para ser “o homem da casa” e isto se resolveria.
Porém, os anos foram se passando e eu me identificava cada vez mais com todo o universo feminino. Por vezes tentava deixar meus cabelos grandes, nas brincadeiras sempre procurava brincar com as ditas brincadeiras de menina ou, quando não tinha como, me imaginava brincando.
O interessante foi quando meu pai, sem perceber, começou a me deixar mais próxima dele, para que a referência masculina dele fosse o único referencial para mim, pois isso me ajudaria no “desenvolvimento correto”. Por isso, comecei a acompanhar meu pai em vários momentos, até nas viagens e mudanças de cidade frequentes, que ele fazia devido ao trabalho hahahaha me sentia uma cigana, já morei em SC, PR e SP.
Depois de tantas mudanças de residência, acabamos nos estabelecendo (a família inteira) em Ribeirão Preto – SP, e foi aí que passei minha pré adolescência e adolescência. Essa foi a pior fase da minha vida. Genteeeee, nunca conheci uma cidade tão transfóbica e interfóbica como aquela! Pelo menos das que eu vivi e das que conversei com outras amigas trans e/ou intersexuais!
Já nesta época minha aparência física e minha forma de me comportar e de me relacionar era feminina e as pessoas da cidade notavam-na de maneira diferente, resultando em inúmeras perseguições, com inúmeros apelidos pejorativos, tais como travequinho, bichinha, viadinho e boiolinha. No colégio (ensino fundamental) eu era perseguida de todas as maneiras possíveis. Seja devido à minha aparência, seja pela minha forma de agir. Os meninos da escola me xingavam, cuspiam em mim e me assediavam sexualmente (passando a mão no meu corpo) para ver se eu tinha “pepeca ou pipi”.
Por essa violência eu evitava frequentar o banheiro masculino, pois se estivesse neste espaço, sofreria mais. O problema era que isso não se restringia somente aos meninos, as meninas também implicavam comigo, principalmente pelo cabelo, o qual despertava inveja (creio eu, pela forma que se comportavam) e muitas vezes eu era alvo de ameaças (queriam jogar goma de mascar em meu cabelo. Diziam que meu cabelo era muito bonito e como menino aquilo não podia).
Em um certo momento, resolvi recorrer à religião para me “curar”. Meu pai é evangélico da congregação cristã e quase minha família toda também. Então, nunca era bem encarada pela família. Não tive nenhum apoio. A família do meu pai na época, junto com a maioria do bairro, faziam de minha vida um inferno. Então, tentei lutar contra esse sentimento de me sentir e enxergar como sendo uma mulher. E acreditem: meu amparo veio de onde eu menos esperava: um padre.
Nesse momento, a única pessoa que podia contar sobre essa intimidade era o padre, pois de todas as vezes que tentei me abrir com alguém – seja na escola ou no bairro – foi mais motivo para ser humilhada publicamente. Então, procurava deixar meu cabelo mais comprido (até onde dava né hahaha) e usava roupas largas e andróginas para não sofrer tanto com as roupas masculinas que me deixavam em uma sensação imensa de calvário.
Nessa época, meu pai às vezes tentava me vestir com roupas convencionalmente masculinas e quando saía com ele para locais onde não me conheciam, as pessoas o questionavam do por que ele fazia aquilo comigo, vestia a filha dele como “menininho”. Eu amava quando isso acontecia (rsrs). Estas perguntas revoltavam meu pai e ele sempre corrigia dizendo que ele tinha um filho e não uma filha.
Aí, já com meus 12 anos, meus seios começaram a apontar (pareciam mais duas azeitonas kkk), minha voz não engrossava e isso levava ao aumento das retaliações, onde agora existiam mais marcadores de diferença como alvo. Eu achava estranho tudo aquilo acontecendo comigo, porém, gostava muito, porque me sentia mais mulher, mesmo sofrendo com aquela presença do pipi. Porém, todos ao meu redor cobravam de mim uma masculinidade nas minhas ações e no meu vestir.
Em casa, meu pai queria que eu fosse “homem”. Minha mãe não tinha muito espaço de falar por conta da criação que teve e minha irmã achava que eu era homossexual. Entretanto, ela não entendia muito minha androgenia de corpo. Nessa época, minha irmã temia muito o que poderia acontecer comigo, porque se realmente eu fosse homossexual, iria “cair no mundo”, ser promíscua, me prostituir, contrair hiv, entre outros estereótipos bastante pejorativos (lembrando, gente, que minha irmã não tinha culpa por pensar assim, a sociedade molda as pessoas a pensarem assim das pessoas diferentes).
Já com meus 13 anos, comecei as terapias psicológicas devido a tudo aquilo que acontecia comigo. Durante esse boom de sentimentos, sensações, preconceitos e discriminações, minha sorte foi achar uma psicóloga muito competente, e ela foi a segunda pessoa além do padre que podia contar sobre estas dúvidas e acontecimentos. Ela me disse que, se era um desejo meu reprimir tudo isso, cuidaríamos disso juntas, mas se fosse um desejo assumir minha identidade feminina, também cuidaria de mim para que eu soubesse lidar com tudo isso.
Nessa fase, a maioria das pessoas, sejam meninos ou meninas, estão vivenciando as transformações da puberdade, que para as pessoas TRANS é um tormento né?! Porém, comigo aconteceu diferente e digo que foi minha salvação! Pois comecei a ter desequilíbrio hormonal e nessa idade não tinha desenvolvido ainda os caracteres secundários (meu físico não parecia nem de menino, nem de menina, além dos peitinhos de azeitona kkkkk). E devido a isso, comecei a passar muito mal. Essa foi uma fase que desmaiava muito no colégio, na igreja, na rua, enfim, em diversos lugares, parecia uma barata tonta sabe (rsrs). Estava tendo hipertireoidismo, hipoglicemia e emagrecimento (igreja começou a associar tudo isso com possessão demoníaca, imaginem os bafos que deu!!! kkkk).
FOI AÍ QUE AS COISAS MUDARAM MINHA GENTE!! UFAAAA! FINALMENTE!!!
Foi quando fui levada ao médico e ele fez exames, que foi detectado um déficit de testosterona (níveis masculinos). Daí no hospital fiz exames que detectaram minha falta de produção de testosterona pelos testículos. Muito provavelmente, o mínimo de T (testosterona) que eu tinha era produzida pelas Adrenais, glândulas que ficam acima dos rins e que, em homens e mulheres, também produzem T e estes eram estéreis (não funcionavam). Daí nesse momento o médico disse que o tratamento era fácil, que só precisaria fazer uma intervenção cirúrgica para adequar meu pênis (que os médicos entendiam como normal) e o restante seria tratado com testosterona (que teria que tomar para a vida toda), pois assim, segundo ele, teria um pênis normal. Eu com todo esse sofrimento interno e não querendo aquele pipi ia tomar ou fazer algo para ficar com um pipi grande, bem capaz né!!! kkk.
Nesse momento, junto com a terapia, com a ajuda do padre e com o apoio de alguns amigos de verdade que tinha contado minha situação, entendi estes déficits hormonais: minha aparência andrógina e meu próprio nome como uma benção divina, daí decidi assumir minha transexualidade.
Daí vocês pensam: como assim você é intersexo???
Sou sim. Meu corpo funcionava nem como de menina, nem como de menino. Porém minha identidade de gênero é feminina, mesmo com aquele pipi que não servia de nada, só para me deixar mal e com nojo de mim mesma!!! Então, para assumir minha identidade feminina, precisava fazer minha transição de gênero, me categorizando como mulher trans intersexo (nome usado no exterior e só agora que vem sendo usado aqui no Brasil).
Quando retornei ao médico, relatei que me recusaria a tomar testosterona, que eu preferiria morrer caso me expusessem a isso. Daí fui encaminhada para o hospital das clínicas FMRP-USP. Fui revirada do avesso e lá mesmo queriam me tratar para o masculino. Eu fui firme e disse que não queria tomar testosterona.
Foi quando comecei a tomar anticoncepcional por conta própria sempre que possível. Quando eu tinha dinheiro, comprova uma cartelinha e ia tomando, porém, não tinha uma frequência regular (é já digo pessoas, não façam isso, é muito perigoso!). Eu estava desesperada, enxergava ali a chance de meu sonho ser realizado e ninguém queria me ajudar: nem os médicos, nem a família (naquele momento). Só que como a falta de hormônio já me fazia mal, imagina a ingestão irregular de um outro hormônio? Também fez né kkkkkkkkkkkk.
Os médicos até notaram que meus níveis de estrogênio subiram um pouco!! Foi quando eles repararam que tinha algo de errado comigo, daí acabei contanto tudo. Nesse momento, expus minha situação à minha família (mãe e irmã), disse o quanto sofria fisicamente e psicologicamente por essa situação, o quanto foi sofrido ser criado como homem, sem ser!!! Minha mãe ficou chocada, sem reação (apesar de, no fundo, saber que sempre fui assim) e minha irmã questionava, dizendo que não era correto aquilo, que precisava aceitar as coisas (imagina gente??? Aceitar o quê? Ser homem sem ser? De certa forma, se eu fosse deixar meu corpo seguir não seria nem homem, nem mulher né!).
O médico ginecologista achou melhor não envolver meu pai na conversa naquele momento e me disse que eu precisava pensar melhor no que queria fazer, pois era uma decisão complicada (apesar que na minha cabeça já estava totalmente resolvida né gente). Depois disso, tive outras consultas com o médico junto com a psicóloga e o médico sempre propunha a masculinização, pois também era menos burocrática e mais fácil, visto que os meus documentos (na época) não precisariam ser alterados e com uma pequena cirurgia e o tratamento hormonal ele cumpriria a tarefa dele. Já a psicóloga do HC entendeu meu processo e disse para ele que era preciso minha participação ativa no tratamento.
Depois disso, conversei com meu pai sobre tudo que estava acontecendo de fato comigo. Ele disse que sempre reparou no meu jeito “feminino” e que ele aceitava eu ser homossexual (nessa época ele não entendia a diferença que existe entre ser homossexual e ser transexual ou intersexual), mas não conseguia entender as mudanças corporais que estavam acontecendo. Ele temia por isso porque achava que eu não seria aceita por ninguém, que não teria trabalho, que seria uma vergonha para todos. Ele dizia que queria meu bem (e de certa forma eu entendia ele né gente, até porque 90% das pessoas transgênero que passam pela transição caem na prostituição, pela não aceitação da sociedade e da família). Então, nesse momento, meu pai disse que não apoiaria a hormonioterapia de estrogênio, porém, não me obrigaria a tomar testosterona.
Gente, imaginem meu sofrimento e minha angústia, estava entre a cruz e a espada sabe!
Eu já estava com quase 14 anos de idade e tinha meu novo retorno médico na genética/ginecologia para ver o que eu tinha resolvido com meus pais. No retorno, contei tudo o que aconteceu e, no Brasil da época, não tinha nenhuma legislação sobre transexualidade e intersexualidade. Lembrem-se que estamos falando do final de 2003. O médico disse que, no HC da USP Ribeirão, só tratariam a minha intersexualidade e que, por eu ser uma pessoa transexual também, eles não poderiam continuar a minha assistência, alegando que poderia ocorrer até prejuízos jurídicos para eles caso fizessem meu tratamento (resumindo, estava jogada).
Então decidiram acompanhar meu caso, mas sem hormonioterapia. Porém, a geneticista do setor, sensibilizada por minha situação, me encaminhou para o Hospital de Base de Rio Preto, onde na época tinha assistência para transexuais e lá haveria autonomia dos profissionais para a prescrição hormonal. Chegando lá, com o encaminhamento e com a descrição de meu caso, os médicos prescrevem a receita dos hormônios adequados ao meu sexo psicológico (feminino), mas meu pai se recusava a comprar o medicamento. Porém, como já disse a vocês, meus níveis hormonais tanto de testosterona quanto de estrogênios eram baixos, eu já estava com 14 anos e isso poderia me dar muitos problemas de saúde (desequilíbrio do eixo hormonal dos outros hormônios produzidos pelo corpo, osteoporose, problemas articulares, o não fechamento das epífises/crescimento ósseo das extremidades, mãos e pés, e relacionados às células do sangue).
Ou seja, a falta de qual fosse o hormônio me prejudicaria, já que eu estava na fase do desenvolvimento. E como continuei a ter os desmaios associados ao hipertireoidismo e hipoglicemia, meu pai, temendo por minha saúde e pela minha vida, aceitou realizar minha hormonioterapia com estrogênio. Finalmente, depois de tudo isso, minha irmã reconheceu que o que ela achava ser o irmão dela nunca existiu e dali em diante ela e minha mãe só me tratavam por pronomes femininos.
Interessante aqui ressaltar que, nessa época (apesar de ainda termos poucos avanços), a hormonioterapia para transexuais só era permitida depois dos 18 anos e para isso precisariam de um respaldo legal. Porém, eu também sendo intersexual, eles teriam respaldo legal para realizá-la.
Com meu 14 anos iniciei minha TH com estrogênios e, como eu não tinha presença significativa de nenhum dos hormônios sexuais, foi um “boom” quando iniciei a terapia. Meu corpo desenvolveu rapidamente, meu seios terminaram de desenvolver e meu corpo também (quadril largo, os ossos, suas estruturas e a musculatura, até meu exame de sangue onde tem os níveis celulares de homens e mulheres estavam todos no feminino e não mais nos níveis infantis como costumavam estar). A partir daí, troquei todas as minhas roupas. Estava no primeiro ano do colegial – imaginem o que deu, né?! E nessa com o tratamento hormonal, meus outros problemas resolveram-se: minha glicose e minha tireoide voltaram a ficar estáveis, ou seja, não tive mais hipertiroidismo e nem hipoglicemia.
E como não podia ser diferente, havia ali alunos que me conheciam de antes (fundamental) e minha troca de roupas foi bem nesse período. Daí começou a sessão humilhação (o que não falta na vida de uma pessoa trans e intersexo), ganhei o apelido de Bernadete, em referência a uma personagem de uma novela que ia ao ar naquela época (chocolate com pimenta). Daí fizeram bandeiras escrito BERNADETE, construíram uma câmera e quando eu chegava na escola, começavam a ir atrás de mim, como se fossem entrevistar a Bernadete da escola. E isso não parou aí: nesse primeiro momento, muitos alunos me xingavam, jogavam coisas em mim, tentavam acertar goma de mascar em meu cabelo, entre outras coisas.
Até que um dia, precisei usar o banheiro. Não aguentava mais ficar toda vez segurando e, quando usei o feminino (para evitar o assédio dos guris do banheiro masculino), invadiram o mesmo, instigados por um grupo de meninas que me viram entrar. Entraram e tentaram me tirar a força do banheiro e até arrancar minha roupa para verificar o que realmente eu era, mas foram contidos por outras meninas que estavam no banheiro e me protegeram para que não fizessem isso comigo (isso me emociona em lembrar sabe).
A escola não sabia muito como lidar com a questão, então, me tratavam no masculino (mesmo meu nome sendo ambíguo), até eu conseguir ser tratada no feminino. Ah, não podia esquecer que logo após estes acontecimentos, a direção da escola interveio dizendo que as pessoas deveriam ser respeitadas como são, contudo, me entendiam como uma pessoa homossexual.
A abordagem que a diretora teve gerou a revolta nos alunos e aí foram atrás de mim dizendo que eu estava sendo errada em reclamar com a direção. Porém, falei que não tinha nada a ver com a atitude da diretora, mas que as brincadeiras que estavam sendo feitas não eram agradáveis. Daí nesse momento tive a oportunidade dos alunos me conhecerem e saberem um pouco da minha história, pois o guri que mais estava à frente das brincadeiras quis me ouvir. Foi quando contei um pouco de minha história, ele se compadeceu e, ele que foi o autor principal de tudo aquilo, passou a me ajudar e então passei de humilhada da escola a querida, até usando o banheiro feminino com tranquilidade.
A partir daí os alunos começaram a cuidar de mim na escola, se solidarizavam com os processos que eu vivenciava, repreendendo fortemente todas as situações de violência que tentavam contra mim (vocês sabem né, sempre tem os ignorantes que querem nos humilhar e atacar). Teve até uma situação em que a menina tentou me humilhar e eu tentei me defender, depois ela foi atrás de mim, me chamando de aberração da natureza, que eu nunca seria mulher, que não passava de um traveco. Tudo isso na biblioteca e eu me segurando para não meter a mão na cara dela.
Não queria descer ao mesmo nível, mas respirei firme e a lembrei da roda da vida, que tudo que ela estava fazendo cedo ou tarde iria retornar e eu não precisaria fazer nada para ela, e que eu rezaria por ela para que ela, o filho dela ou alguém da família dela passasse por aquilo que ela estava me fazendo passar. Daí nisso muitas pessoas interviram repreendendo-a e tals, tentaram até atacá-la, perguntando por que ela estava fazendo isso, pois ela (no caso eu) não mexia com ninguém e intervi para que não fizessem nada com ela. Ainda aconteceram muitas outras coisas, mas estas duas no ensino médio foram as que mais me marcaram.
Agora vamos para meu bairro, onde ocorreu a pior situação que enfrentei:
Nessa época, já não estava mais animada com a igreja, pois o padre que me ajudava foi transferido. Ele foi denunciado por algumas pessoas do bairro por estar “apoiando” coisas imorais. Isso para mim foi a gota d’água. Me afastei da igreja católica como tinha feito da evangélica e acabei encontrando abrigo e compreensão no espiritismo e budismo, que entendiam minha condição e sabiam muito bem diferenciar homossexualidade de transexualidade e intersexualidade (lembrando que elas respeitam todas as condições).
E como nem tudo pode ser conquistado de forma fácil, grande parte da família do meu pai começaram a inventar histórias, espalharam entre os vizinhos que viajei para o exterior para fazer mudanças corporais. Criaram histórias que eu tinha aplicado silicone industrial no corpo, que tinha tirado costela, até inventaram que a minha própria mão teria injetado o silicone industrial no meu corpo, entre outras coisas muito desagradáveis. Tudo com o intuito de desqualificar e criar uma imagem negativa minha na vizinhança e familiares. Eu não tenho nada contra qualquer um destes procedimentos, pois hoje as pessoas são livres para fazer o que quiserem (mas é perigoso, né?), porém, inventar e desqualificar alguém, ainda menor de idade, por coisas que não fez só para nos ridicularizar ou humilhar é intolerável né!!!
Já bem feminina, a violência só aumentou no meu bairro. Na rua, as pessoas me perseguiam, jogavam pedras quando eu passava, recebia olhares de reprovação na rua, no ônibus, no posto de saúde, recebia cusparadas de muitas senhoras, senhores e jovens. Além dos altos xingamentos de traveco e aberração. O que mais me espantava nisso tudo era que muitos meninos, que me humilhavam publicamente, queriam ter relação afetivo-sexual comigo escondido. Faziam proposta de encontros escondidos, perguntavam sobre meu genital e sobre meu “dote” (como chamam o pipi das travestis) e é obvio que eu fugia né. Isto acontecia no colégio, na rua, em todos os espaços em que eu frequentava. Em relação às meninas não entendia o porquê daquela discriminação. Eu estava totalmente feminina e elas não aceitavam isso, queriam me rebaixar, era lamentável. Chegou um momento em que parei de andar sozinha no bairro, pois era impossível devido a todas as violências que sofria. Eu chamava meus poucos amigo(a)s para me acompanharem nos lugares quando algum familiar não podia ir comigo, até mesmo na padaria tinha que ir com alguém para não sofrer violência física. Meus pais me levavam e a buscavam em todos os lugares.
Minha retificação dos documentos foi uma coisa que demorou muito tempo para acontecer. Contudo, como eu tinha um nome ambíguo, conseguia passar com certa tranquilidade pela maioria das situações que exigiam a apresentação do documento. Porém, tive que me alistar no exército, pois tinha meus documentos como masculino ainda, porém, como meu corpo já refletia o que eu realmente era (mulher), consegui ir sem grandes dificuldades. Minha psicóloga fez um relatório falando de minha condição, explicando porque aquela pessoa feminina ainda tinha certidão de nascimento constando sexo masculino, aí eu pude ir mais tarde e precisava assinar a baixa do alistamento para que não houvesse problemas legais que dificultassem minha alteração nos documentos mais adiante. O engraçado foi ver os meninos não entendendo minha presença ali, ficavam me paquerando kkkkkkkkkkk mas foi tranquilo graças a Deus.
Depois de tudo isso e da finalização do ensino médio, consegui passar na universidade. Foi uma prova de meu caráter para muitas pessoas. Na época passei em várias (USP em terapia ocupacional, UNESP em serviço social, UFSCAR em terapia ocupacional, UNIFESP em terapia ocupacional e ganhei uma bolsa para fisioterapia em uma universidade particular na época. Isso era meados de 2008, meu pai ficou todo orgulhoso e isso me deixou em paz comigo mesma, sabe! Acabei optando por ir estudar na USP.
Na recepção dos calouros, pela ambiguidade do meu nome, na lista tinha um ponto de interrogação em frente ao meu nome e as veteranas tinham a expectativa que eu fosse um menino, visto que majoritariamente as turmas eram preenchidas por mulheres. Quando me apresentei para preenchimento das vagas, as meninas ficaram tristes e gritavam “ai não, mais uma mulher” e isso foi uma conquista maior ainda. Mas enquanto eu era recepcionada pelos veteranos, minha irmã conversou com as secretarias sobre a importância de meu tratamento no feminino, já que na inscrição precisava apresentar a certidão de nascimento e ainda não tinha conseguido mudar os documentos. Felizmente foi tranquilo, elas entenderam e repassaram para frente. O mais legal foi ver a evolução da minha irmã, que passou daquela que não entendia minha situação quando mais novinha para minha apoiadora principal.
Passada a saga inicial, fui negociar com todas as docentes sobre os possíveis constrangimentos que passaria. Nisso expliquei o porquê dos meus documentos estarem assim e pedi que fosse tratada segundo o que eu era, no feminino, pois ainda tinha medo de repetir todos aqueles tormentos que costumava passar.
Queria viver como uma pessoa Cisgênera (pessoa que tem sexo psicológico igual ao físico e não passa pelos constrangimentos das pessoas transgêneras) e as docentes foram empáticas comigo. Só tive uns pequenos probleminhas com uma, que logo se resolveu. Eu não falei sobre minha “condição”, não queria ser conhecida como a aluna transexual e intersexual do curso e da USP (na época), queria ser reconhecida pelo que eu era: uma garota como outra qualquer.
Nesse momento, procurei os médicos do ambulatório, a geneticista que me atendia e o diretor da faculdade de medicina, não mais como a paciente e sim como aluna da USP. Eu tinha medo da exposição do meu caso, de alguém acessar meu prontuário ou qualquer coisa do gênero se algo fosse dito por alguém na faculdade. Daí houve uma mobilização para que meu caso ficasse oculto na faculdade e meus professores, inclusive o diretor da faculdade de medicina da época, começaram a se mobilizar para que a cirurgia acontecesse o mais rapidamente (lembrando que ainda não tinha me operado).
Continuei militando pela causa na época, mas agora como uma pessoa cisgênera que lutava pelos direitos das pessoas trans e intersexuais. As pessoas até achavam estranho minha militância, porém, achavam que eu tinha um caso na família e por isso eu lutava e tentava trazer para graduação e para as discussões terapêuticas essa temática.
Lembrando que ainda estávamos em 2008 (ano do início do processo transexualizador no SUS), eu estava com 18 anos e mais uma vez minha intersexualidade e transexualidade se cruzam, o que de certa forma criou brechas para facilitar minha cirurgia de readequação sexual. Por ser intersexual, poderia fazer uma cirurgia antes dos 18 se meus documentos condissessem com o sexo que pretendia. Caso contrário, só depois dos 18 anos. Já em relação à transexualidade, que eu também apresentava, só podia ser com 21 anos (já que precisaria de fazer a transgenitalização, transformar o pipi em pepeka, e precisaria ser um médico específico). Lembrem-se que a portaria do processo transexualizador tinha acabado de ser aprovada. Então era tudo muito novo no Brasil (como sempre né pessoal).
Muita gente fala que o Brasil é muito atrasado em relação às cirurgias de mudança de sexo. Se mal feita, sabemos que a pessoa pode inclusive perder a sensibilidade caso o processo não seja preciso. O que você diz sobre isso?
Pensei em fazer a cirurgia pelo hospital de base de Rio Preto, porém, lá era pago e na época a taxa era 10 mil reais para o médico e eu não tinha aquele dinheiro. Porém, eu também era intersexual, e isso abria precedentes de realizar a cirurgia no HC, em que eu também tratava, onde não tinha taxas e na época era um hospital de referência para tratamento para intersexuais.
O que posso dizer é que, nestas idas e vindas, algumas pessoas da faculdade de medicina e do curso de terapia ocupacional foram muitos solidários com minhas vivências e acontecimentos, e isso ajudou muito com todo o processo. Me falavam que eu era um exemplo de luta e superação e que iam me ajudar, que na instituição eu era o primeiro caso assim e que deveria ser valorizado. Isso era um ganho para toda a causa e podia um dia servir de inspiração tanto para outras transexuais, quanto para outras intersexuais que se percebessem trans!!!
Como tinha entrado com o processo para autorização da realização da cirurgia e estava demorando um pouco para sair a resposta, a equipe médica (genética, ginecologia, urologia e mastologia), com receio pela angústia e pelos sofrimentos que já havia passado e ainda passava no bairro em que morava, me questionaram se, além da cirurgia genital (readequação sexual) eu tinha vontade de aumentar os seios, pois como o HC é um hospital escola, ele realiza cirurgias assim para os médicos aprenderem a realizá-las. Eles me explicaram que ela era gratuita para pacientes oncológicos (mama), mas para as outras tinha que pagar as próteses (é obvio que aceitei e fui atrás de conseguir o dinheiro, por meio de vaquinha). Daí consegui colocar próteses nos seios! PS: Alguns vão se perguntar: porque tu fizestes se tinha mama??? E eu respondo \o///: é porque sou uma mulher alta e usava 42 de sutiã e mesmo sem ter próteses nos seios, todo mundo falava que tinha, daí pensei: quer saber, já falam né! Então vou é fazer mesmo, então passei a usar 46 rsrsrs.
Finalmente, um ano depois da cirurgia da mama, saiu a autorização de minha cirurgia de readequação de sexo e, com a ajuda dos professores e com a exigência do diretor da faculdade de medicina, conseguiram fazer a minha cirurgia no HC de Ribeirão. A cirurgia aconteceu via o processo intersexual, contudo, conseguiram levar o médico que fazia a transgenitalização do processo transexualizador. Na época, eu tinha 20 anos, quase 21, e em meados de 2010 foi meu novo nascimento, agora totalmente resignada ao meu sexo verdadeiro e com a sensibilidade preservada (rsrsrs). No mesmo ano ocorreu minha retificação dos documentos e agora sou mulher também oficialmente nos documentos.
Hoje em dia, o SUS faz cirurgia gratuita também, certo? Você saberia dizer quais e em quais condições? E quanto ao tempo de espera? A fila é grande?
Sim, hoje em dia o SUS faz a cirurgia de resignação sexual tanto para transexuais quanto para intersexuais (que possuem pepeka ou pipi). Elas são realizadas apenas em 5 hospitais e a fila está em torno de 10 anos: uma tristeza né!!! Para os casos de intersexuais com genital ambígua, existe um hospital de referência na Bahia, a UFBA, que faz um atendimento bem humanizado para a população intersexual. Vários hospitais gerais acompanham estes casos e muitas vezes fazem cirurgia na população inter, mas não levando tanto em consideração a identidade de gênero desta população. O que é uma pena, conforme já citado nessa entrevista….
E para o Intersexual que ainda está na dúvida se deve operar ou não (sabemos que nem todos sentem a necessidade que, por ventura, um médico ou os familiares podem sentir), o que você diria?
Então para eles digo uma coisa: fiquem como vocês estão, não precisam fazer uma cirurgia para se adequarem a um sistema ou a uma norma. Vocês precisam se operar para vocês. Se o seu gênero ou sua identidade de gênero possibilita que vocês convivam com o genital do jeito que nasceram (ambíguo, pipi ou pepeka), fiquem assim, sejam felizes e lutem pelo direito de existir. Afinal de contas, vocês nasceram assim!
Fale mais sobre os avanços da intersexualidade, as leis etc.
Então, no Brasil não temos uma lei específica, o que temos são jurisprudências para autodeterminação de gênero, por isso mesmo lutamos juntos com a causa transexual para a aprovação da lei de identidade de gênero que possibilita que uma pessoa trans, e até mesmo inter, mude seus documentos de acordo com seu sexo psicológico (identidade de gênero), e documentação é tudo né gente? Você tendo seus documentos de acordo com seu íntimo você consegue ir ao posto de saúde, arrumar um emprego e ser aceito no meio social em que vive como pessoa munida de direitos e deveres.
E para não esquecer, atualmente o que tem de regulamento das cirurgias, tanto para transexuais quanto para intersexuais, são regulamentações do conselho federal de medicina que regulam a cirurgia transexual, que são: RESOLUÇÃO CFM nº 1.955/10 (terceira resolução já feita anulando a de 1997 e a de 2002) e a que regula a cirurgia intersexual, RESOLUÇÃO CFM Nº 1.664/2003. Não existe nada na legislação, nem em lei sobre como proceder de forma humana e autodeterminada em relação à questão transexual e intersexual, o que é lamentável!!!
Lembrando que, no que diz respeito à intersexualidade, o Chile é o primeiro país da America Latina que proibiu cirurgias precoces em crianças intersexo e, em relação aos transexuais, o Brasil é um dos poucos países da America Latina que não têm leis específicas para a população transgênera!
Como é a sua vida amorosa? Os homens te tratam bem ou você se sente discriminada por isso? A propósito, como foi contar pela primeira vez que você era inter?
Então, isso varia muito sabe. Na minha época de transição de gênero era bem complicado, pois os homens se aproximavam de mim por pura curiosidade, sabe, chegava a ser nojento, aquele interesse com perguntas muito desconfortáveis para um adolescente (na época). Daí ficava uma confusão. Eu era muito discriminada nas ruas do meu bairro e no colégio, porém, me procuravam no “inbox” para tentarem algo. Mas sempre fui muito rígida: até parece que eu ia me submeter a caprichos e fetiches de homens assim!!! E ainda tinham aquelas gurias que não suportavam ver os meninos que não conheciam a minha história tentarem me paquerar e tentavam estragar o interesse deles dizendo que eu era uma “travesti”.
Minha adolescência foi basicamente bem conflituosa neste aspecto, mas com muita sorte eu acabei encontrando caras legais e namorei sério por um bom tempo. Meu primeiro namorado foi dos 14 aos 17 anos e o segundo dos 18 aos 20 anos: ambos eram do bairro onde morava e passavam um perrengue junto comigo, mas me protegiam do jeito que dava dos constantes ataques morais e violentos que passei.
Acabou não dando certo na época por outras questões que iam além da minha sexualidade, sabe. O primeiro durou 3 anos e não deu certo por própria imaturidade nossa: brigávamos muito e éramos muito ciumentos, isso desgasta qualquer relacionamento né, kkkkk e ntão acabamos seguindo caminhos diferentes. Já o segundo foi mais um amigo que namorado: entrou na minha vida de um jeito bem particular como amigo e foi ficando até se tornar namorado, porém, nossos objetivos eram bem diferentes e, quando entrei na faculdade, acabamos ficando mais distantes e isso culminou no término. O legal é que com ambos ainda mantenho uma amizade saudável.
Meu último namorado foi na faculdade e ele me conheceu como mulher cis (pessoas que não são trans). Todos na faculdade também achavam que eu era cisgênera e nessa época procurei manter assim, pois queria saber como era passar nos locais sem ser discriminada ou sofrer preconceitos e ver qual era a diferença de ser CIS e TRANS perante a sociedade (e constatei que somos tratadas totalmente diferentes. É muito bom ser CIS e reconheço que as pessoas TRANS e INTERSEXUAIS realmente são tratadas com uma enorme diferença).
Agora vocês devem estar achando que eu não contei para ele, né???
Capaz, eu contei sim, mas esperei a gente se relacionar primeiro, ele ver que eu era como qualquer outra mulher, para depois contar e assim o fiz. A reação dele não podia ser diferente: ele realmente viu que eu era como qualquer outra guria e a gente namorou por dois anos, terminamos por motivos naturais e como nos tínhamos objetivos diferentes de pós-graduação, de cidade e de perspectivas de futuro, nos separamos – até porque ele ama Ribeirão Preto e a família dele é de lá e eu não amo aquela cidade.
Passei um bocado lá e como já disse, nunca vi uma cidade tão transfóbica quanto aquela e, sinceramente? O que guardo de bom de lá são meus amigos verdadeiros que fiz no colégio, no bairro, na faculdade e os médicos que me atenderam no HC. As outras esmagadoras lembranças são de maldade, preconceito e ódio que tinham pela condição que mal entendiam. Enfim, águas passadas. Atualmente estou solteira e já fazem 4 anos hahahahahaha (então, homens acima de 1,75, loiros ou ruivos estou à disposição kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk. Tenho uma fascinação por homens assim, mas os que namorei eram morenos, acho que tenho amor platônico por esse perfil hahaha aiiii). Brincadeira ta genteeeeee! Saindo da brincadeira, atualmente tá difícil sim ainda, mas aqui no Brasil né. Antes, como não era pessoa pública, contava minha condição para alguns piás que conhecia e eles levavam de boa, mas agora que estou na militância e minha história ser pública, eles fogem ou não querem assumir. Se for para ficar assim, fico solteira e feliz como estou agora, né amigaaaa!!!
Se tiver uma intersexual nos lendo agora, qual conselho você daria a ela em relação a se assumir (ou não)?
Então, eu particularmente acho que, depois de tudo que passei na infância, adolescência e depois vivendo um tempo como pessoa CIS, a melhor forma de mudarmos a ideia errônea das outras pessoas é nos assumindo, pois assim damos visibilidade à causa. Porém, em minha vivência como pessoa CIS, vi a diferença no tratamento que as pessoas Cisgêneras têm em relação à causa TRANS e INTERSEXO. Então, digo para vocês seguirem seus corações, pois cada vivência acontece de forma individual e só assim para vocês saberem se estão prontos(as) para se assumirem ou não!
E tenham fé sempre, pois Deus (para quem acredita) ama vocês do jeito que são, então não permitam que digam o contrário ou que humilhem vocês. Não tentem mudar as pessoas, pois se elas não estiverem abertas para o novo, será murro em ponta de faca. Sejam vocês e, se não te aceitam em determinadas religiões, deixem quieto, pois esse é o momento de cada um. Quando for o momento, eles despertarão. Procurem uma religião, se quiserem claro, que aceitem vocês. Existem milhares e Deus está em todas elas. Eu me encontrei no espiritismo e no budismo, religiões que entendem muito bem nossas condições, mas se você se sentir bem, pode procurar qualquer outra ou mesmo encontrar Deus em seu interior. Falo isso pois além de minha família e amigos que me ajudaram muito depois que tudo explodiu, sempre senti essa fé grande de mim, e ela me ajudou muito. Sempre sentia essa luz que me acalmava, não me deixava desanimar e me mostrava o caminho quando estava sem esperanças e sem luz, me mostrando o quanto eu era amada pelo criador e que para tudo tem um jeito, é só acreditar, ter fé e lutar por aquilo que quer!
Você poderia indicar algumas fontes para a gente? Telefones, endereços, sites ou qualquer sinal de fumaça! Apresente a ONG maravilhosa que você faz parte também =)
Então, se você ou alguém da sua família tem alguma questão de sexualidade, gênero e/ou sexo que necessita de ajuda, primeiramente procure ajuda médica e psicológica e depois uma ONG que trabalhe com direitos humanos ou diversidade em sua cidade ou em uma cidade vizinha, para poder te dar apoio legal. Dependendo do local, tu também pode procurar um advogado do Estado para verificar as questões dos documentos, se necessitar. Aqui em Curitiba temos a ONG TRANSGRUPO Marcela Prado que atende e trabalha as necessidades da população transgênero e o Grupo Diversidade que trabalha com as questões relacionadas à população LGBTI.
Mais alguma consideração a fazer?
Gostaria de deixar aqui um recado para aquelas pessoas que se enchem de orgulho em dizer que só existe homem e mulher ou que só existe homens XY e mulheres XX: infelizmente para vocês e felizmente para todos nós existem sim outras variações cromossômicas, genéticas, hormonais e físicas que rompem biologicamente essa visão binária e preconceituosa de que só existe essa dualidade. Isso é uma meia verdade: existem sim pessoas intersexuais, e estas podem ou não vivenciar esta situação de sua biologia ambígua.
Da mesma forma que as pessoas transexuais tem uma vivência de sua identidade de gênero diferente de seu sexo físico e podem ou não realizar a cirurgia, tudo isso faz parte da existência humana. Nós humanos somos diversos, mesmo uma pessoa cisgênera e hétero não é igual a outra. Somos iguais na diferença e é isso que nos torna humanos e maravilhosos. Nós humanos sofremos mudanças todos os dias de nossas vidas e isso faz parte do viver. Então, vamos parar de tanto preconceito e discriminação e nos informar, estudar e nos colocar no lugar do outro, vamos ter mais EMPATIA.
Caso queira, deixe suas redes e contatos!
Texto sobre Intersexos que nós, do grupo de intersexos do Brasil, escrevemos baseados em um estudo recente.
Livros da Associação América de Pediatria e de Ginecologia sobre Intersexos:
- Allen L. Disorders of sexual development. Obstet Gynecol Clin North Am. 2009;36:25-45.
- Donohoue PA. Disorders of sex development (intersex). Em: Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF, eds. Nelson Textbook of Pediatrics. 19a ed. Philadelphia, Pa: Saunders Elsevier; 2011:cap 582.
Meu perfil pessoal – Dionne Freitas
Página de visibilidade intersexo que ajudo a administrar – Visibilidade Intersexo
Página de sexualidade que administro – Sexo, Sexualidade e Gênero
Grupo de sexualidade que administro – SEXUALIDADE HUMANA: Muito além do Gênero e do Sexo
Muito obrigada pela entrevista e espero ter contribuído com um pouco mais de visibilidade para essa causa que, ao contrário do que muita gente pensa, de rara não tem nada. E mesmo se fosse, merece respeito também. Você é maravilhosaaa =)
Obrigada gente querida e linda por terem lido um pouquinho sobre minha história e minhas lutas! Tenho orgulho de ser quem eu sou e de estar lutando pelas minhas irmãs e irmãos transexuais, transgêneros e intersexuais. E muito orgulho de ser uma mulher trans intersexual hétero (sim sou hétero, gosto de homem, seja cis ou trans hihihi)
BEIJO GATA OBRIGADAAAAAAAA!
Beijão maravilhosaaaaaa!